É sabido que a Índia possui uma imensa tradição na indústria cinematográfica em diversos gêneros. Embora Bollywood seja a mais conhecida, várias outras indústrias regionais, como Tollywood (cinema Telugu), Kollywood (cinema Tamil) e Mollywood (cinema Malayalam), também contribuem significativamente para o cenário de filmes, incluindo o cinema fantástico e de terror. Esse gênero começou a ganhar popularidade na Índia por volta das décadas de 1940 e 1950, influenciado pelo cinema gótico ocidental. Filmes como Mahal (1949), de Kamal Amrohi, que é considerado um dos primeiros filmes de terror indianos, exploravam temas como casas assombradas e reencarnação. Já nas décadas de 1970 e 1980, a proliferação de filmes de terror aumentou, com a produtora Ramsay Brothers se destacando na criação de uma série de filmes de terror de baixo orçamento que misturavam horror com elementos de suspense e erotismo, o que parecia ser uma tendência mundial na época. Com a popularização do gênero crescendo lá, vieram os anos 90 e 80 com a diversificação e sofisticação dos filmes que passaram a abraçar temas, narrativas e efeitos mais complexos. Um grande exemplo é o filme Raat (1992) de Ram Gopal Varma, um thriller psicológico sobre uma família que se muda para uma nova casa, onde começam a ocorrer eventos sobrenaturais. Nos últimos anos, houve um aumento na produção de filmes de terror psicológico e sobrenatural na Índia. Diretores como Anurag Kashyap e Vikram Bhatt continuam a explorar o gênero seja no formato para cinema ou TV. Filmes como Phobia (2016) e a antologia Quatro Histórias de Fantasmas (2020), oferecem uma abordagem mais sutil e atmosférica do horror mostrando como o cinema indiano moderno integra e explora muito bem suas tradições e sua mitologia em narrativas de horror. Outro excelente exemplo é o filme Tumbbad (2018) que explora e aprofunda a mitologia hindu combinando elementos de fantasia e terror para criar uma experiência cinematográfica única. Não podemos esquecer também de Bubbul (2020), filme dirigido por Anvita Dutt, produzido por Anushka Sharma e Karnesh Ssharma que traz uma abordagem de gênero inovadora naquele país, pela narrativa feminista combinada a elementos do folclore indiano e critica social ao patriarcado.
Bramayugam de Rahul Sadasivan chega em 2024 para completar esse time, sem alarde, sem lançamento oficial nos cinemas do Brasil, sem entrada em streamings, somente no boca a boca somado a boa vontade de pessoas e causando surpresa aos fãs do gênero, não só pela ambientação em um contexto rural e sua fotografia monocromática que captura a beleza e a escuridão desse local, mas muito também pela tensão psicológica e sobrenatural crescentes evidenciados pelo cenário e pelo misterioso personagem Kodumon Potti interpretado pelo ator Mammootty. No início do século XVII a colonização europeia estava começando a se estabelecer na Índia, Thevan (Arjun Ashokan) e um amigo escapam do tráfico de escravos português e fogem, acampando durante a noite nas margens do rio Bharathappuzha. O amigo de Thevan é morto por um Yakshi, espírito feminino da natureza que pode ser sedutor, mas também extremamente mortal. Thevan passa a noite correndo e fugindo até encontrar uma casa abandonada e, ao tentar roubar um coco, é capturado pelo cozinheiro da casa e levado ao dono do lugar, Kodumon Potti. Potti é misterioso, sempre com um sorriso malicioso no rosto e um olhar que causa medo, mas ao mesmo tempo convidativo. Em troca de comida e água, Thevan oferece seu canto e consegue conquistar Potti que insiste para que ele passe a noite lá, apesar de Thevan querer partir. Desse momento em diante, uma trama de revelações e estranhos acontecimentos sobrenaturais vão acontecendo. Thevan que misteriosamente não consegue mais sair daquela casa, passa a ficar assustado com os segredos que vai descobrindo sobre Potti, sua família e todo o envolvimento sinistro que tiveram com uma criatura demoníaca. O cozinheiro de Potti, também é um prisioneiro e vai soltando aos poucos a história por trás do anfitrião, inclusive, o segredo de como escapar dali.
Tudo é muito bem construído pelo diretor Rahul Sadasivan, em seu terror de época preto e branco, ele consegue hipnotizar o público com referências a seres míticos que interagiam livremente com seres humanos, mesmo que parte do público não conheça de que ser mítico ele esteja falando, ainda consegue criar uma sensação estranhamente enervante com um vilão que cruz credo. Não tem como ser diferente, já que tudo é contado e visto pela perspectiva de Thevan que é a maior vítima daquela configuração apavorante e acaba que estamos junto com ele nessa. Cada aspecto do filme contribui para imergimos em sua atmosfera, desde as entranhas escuras dos cômodos daquela casa até o som e a música, tudo trabalha em conjunto para criar uma sensação de tensão fugindo dos sustos fáceis. O roteiro, também de Rahul Sadasivan, é habilmente orquestrado, revelando informações sobre a casa mística e seus habitantes de maneira lenta e cheia de suspense, iluminando o sistema de castas e refletindo sua influência na sociedade atual. Bramayugam também inclui sequências de flashbacks narradas em animação, que intensificam o entusiasmo pelo conto popular e destacam a obra como uma verdadeira obra-prima técnica e narrativa do terror. Pode ser cedo para afirmar isso? Pode, mas, por ora, arrisco dizer que qualquer um que assista a essa produção indiana dificilmente sairá indiferente ao seu final. Por fim, Bramayugam é o resultado de um filme bem escrito e bem encenado, uma experiência cinematográfica única, até agora está como meu favorito de terror deste ano junto com o perturbador espanhol La Mesita del Comedor de Caye Casas, que é de 2022, teve seu circuito em festivais, inclusive no Fantaspoa em 2023 e parece que tá ganhando fama só agora em 2024 depois de ser elogiado por Stephen King e ganhar distribuição em streamings. Alguém manda aí uma fita de Bramayugam pro King assistir, por favor!
BRAMAYUGAM (2024)
IMDb | Rotten Tomatoes | Letterboxd | Filmow
Direção Rahul Sadasivan
Duração 139 min
Gênero(s) Horror, Mistério e suspense
Elenco Amalda Liz Yakshi, Arjun Ashokan Thevan, Mammootty Kodumon Potti, Sidharth Bharathan Servant +