Desde que vi Imitação da Vida de 1934, estrelado por Fredi Washington (1903-1994), tenho vontade de escrever sobre questões de não pertencimento, birracialidade e “passing”. Imitação da Vida não é um filme de terror, mas a personagem de Fredi, atriz afro-americana, ativista dos direitos civis, uma das primeiras negras a ganhar reconhecimento por seu trabalho no cinema nas décadas de 1920 e 1930, é também conhecida por ser branca demais para ser negra e negra demais para ser branca, interpreta no filme uma negra de pele clara que é filha de mãe negra de pele escura. A jovem vive o dilema de “não pertencer” nem à raça negra, nem à branca e renega sua mãe por isso. Fredi é também uma atriz conhecida por enfrentar esse dilema na vida real, pois decidiu abraçar a sua negritude e se recusou às propostas de Hollywood de se embranquecer para conseguir mais papéis. O “passing”, principalmente nos EUA, era mais frequente quando existiam as políticas e leis anti miscigenação, quando um membro de um grupo racial podia ser aceito e ser assimilado pelo grupo privilegiado branco e fugir justamente daquelas convenções impostas de segregação e racismo. Para essas pessoas e nesse contexto, as razões poderiam ser inúmeras, mas a principal, era o estigma associado à raça. Esse processo, que durou quase longos três séculos, foi perdendo força só na segunda metade do século XX, mas, são inúmeras as histórias de pessoas que abandonaram tudo para recomeçar se passando por branco. Gosto muito de pensar de como o horror vem se reconfigurando em angústias, medos e temas que antes não eram percebidos dentro do gênero.
O filme que falarei hoje não se passa nos EUA, mas na Inglaterra em 2002, lugar dos imigrantes da geração Windrush, navio que desembarcava em 1948 com gentes vindas de vários cantos do Caribe e que se tornou um divisor de águas influenciando diretamente vários setores culturais, sociais, elevando ainda mais o debate racial no Reino Unido. O que inicialmente eram decisões puramente comerciais entre pátria mãe e colonizados, acabou se tornando uma repatriação dos povos “black e brown” que se sentiram livres para migrar para a “pátria mãe”. Foi a partir daí que os caribenhos passaram a ser vistos como a ameaça negra, muito longe do tão sonhado sonho de vivarem cidadãos britânicos, aumentando assim as discussões no Reino Unido sobre força de trabalho barata e miscigenação.
Toda essa viagem é para pensarmos juntos de como as camadas em Excluídos foram formadas e de como a história aborda o racismo sistêmico e questões iniciadas há tempos por lá, usando o passabilidade e a birracialidade como tema central num drama de horror. The Strays ou Excluídos, nome que ganhou aqui no Brasil, foi lançado diretamente para a Netflix e é escrito e dirigido por Nathaniel Martello-White e aqui acompanhamos Cheryl (Ashley Madekwe), que em 2002 é uma moça britânica negra de pele clara que já vivenciou seus dias de glórias no trabalho e está passando por dificuldades e instabilidade financeira.
Ela não consegue mais emprego e até enfrenta certa resistência para conseguir assistência e seguridade do governo. Aliás, se formos pensar mais, o filme toca, mesmo que indiretamente, no “sonho britânico” que é até menos discutido do que o “american dream”, de acreditar numa ascensão social através da meritocracia e do trabalho duro independente de sua raça ou classe social. Não é nisso que Cheryl acredita e ela pende muito mais pelo lado que, se aproximando de uma certa branquitude, suas chances em alcançar esse tal status aumentam mais. Ela, atolada em dívidas e desesperada, fala no telefone com alguém que recrimina esse comportamento de Cheryl de gastar o que não tem para parecer o que não é. É quando a personagem questiona: “Qual o problema em querer mais?” É quando, então, ela abandona tudo, casa, família, filhos e a sua própria identidade para recomeçar sua vida como mulher branca. O corte na cena mostra que os anos passaram e Cheryl agora é Neve. Ela se casou com Ian (Justin Salinger), um homem branco rico, foi morar numa super casa num subúrbio também rico, sendo aparentemente a única família não branca desse lugar. Reinventou seu estilo de se vestir, de se comportar e falar, usa perucas para esconder seu cabelo crespo, não deixando nem mesmo seu marido tocar, trabalha como vice-diretora de escola particular de classe média alta onde seus filhos mestiços adolescentes, Mary (Maria Almeida) e Sebastian (Samuel Small), estudam. Até aqui já deu pra perceber que Neve, frustrada com sua antiga vida e carregando uma ambição problemática, prefere acreditar que é branca, mesmo se sentindo estranha e não à vontade na nova máscara.
Acredito que muitas pessoas pretas já se tenham feito a pergunta: e se eu fosse branco/branca? Aliás, muitos desses questionamentos e reflexões costumam invadir vez ou outra as redes sociais com perguntas do tipo: e se você fosse branco, qual a primeira coisa que faria? Não foi incomum encontrar respostas do tipo: iria ao shopping de chinelo ou mexeria na bolsa dentro no supermercado. Bem coisas do tipo que para um tipo de gente é super comum, mas para outras camadas, se torna algo praticamente impossível e eu nem vou me explicar aqui do porquê. São exemplos simples só para a gente perceber como a pergunta traz diversas reflexões e mexe com várias questões.
Neve vive ansiosa e tudo piora quando ela passa a observar a presença de dois jovens negros de pele escura nos mesmos locais que ela frequenta, destoando de seu mudinho branco e ameaçando tudo que ela construiu, mesmo que tenha sido na base do abandono. Abandono de absolutamente tudo, e Marvin (Jorden Myrie) e Abigail (Bukky Bakray) obrigam Neve a se confrontar com algo que ela fugiu e abandonou, sua própria negritude. A aproximação dos jovens faz com que os filhos de Neve se conectem cada vez mais com a raça e sua ancestralidade.
A grande revelação do filme nos deixa boquiabertos assim como deixa Neve também. A construção de medo, de ansiedade, de suspense, frustração e desconforto, são construções e elementos que fazem desse filme um horror bem eficiente. O riso forçado, contido, os olhares dos vizinhos, o som das unhas de Neve arranhando seu couro cabeludo sob a peruca, a trilha sonora e até a falta dela, complementam essa atmosfera dramática e terror psicológico crescente. Muito se falou sobre Excluídos ser um novo Corra! e até entendo dos filmes raciais hoje em dia serem comparados muitas vezes com as produções de Jordan Peele, até porque o realizador norte americano reabriu um caminho de possibilidades no terror negro e qualquer filme feito pós-Peele, vai ser muito provavelmente comparado com suas produções. No entanto, vejo Excluídos como uma pegada bem diferente e história própria, mesmo havendo semelhanças nas sensações que o filme provoca na gente, ainda assim consegue ser um filho que se desgarrou da barra da saia da mãe.
É chegado o momento da trama em que tudo já foi revelado e o único mistério que fica é como isso vai terminar. A desconfiança que Marvin e Abigail eram pessoas do passado de Neve se confirma, mas não só isso, eles são os filhos que ela abandonou e que agora voltaram para perturbar a pseudo harmoniosa vida dela. A negritude escancarada dos dois, junto com preterimento da própria mãe, passam a ser a ameaça agora. Eles têm um plano e estão focados em executar até que em determinado momento da trama, vira praticamente um filme de home invasion e aí sim, se for para comparar com alguém, que seja com o Haneke e seu perturbador Funny Games. O que já estava tenso, se torna mais tenso ainda quando finalmente o confronto direto acontece. Questionamentos sobre abandono, predileção, apagamento entram nas discussões e a gente, enquanto espectador, até se pergunta quem seria o verdadeiro vilão aqui. Aí chega ao fim de uma forma totalmente inesperada deixando a gente e também os próprios personagens sem chão, e o que para muitos foi decepcionante, para mim vi como a única solução possível para uma pessoa que passou a vida toda fugindo e que seria capaz de repetir tudo de novo outra vez. Não dá para esperar empatia ou algum sentimento perto de remorso ou sensatez de uma pessoa que fez tudo que Neve fez. Ela não pensaria duas vezes em reinventar sua história quantas vezes mais fosse necessária.
Nathaniel Martello-White, ator roteirista e diretor britânico, faz de seu primeiro longa-metragem um filme difícil de esquecer. Ele fica reverberando dias e dias na tua cabeça, além de levantar diversas discussões como o filme de Fredi Washington que citei lá no comecinho do texto. Ele conseguiu me fazer pesquisar sobre coisas que jamais pensaria em abordar num texto. É disso que gosto no gênero Terror e de como ele se aproxima de diversas questões sociais, políticas e de olhares que não seja aquele já abordado há séculos e séculos e que aprendemos ser o padrão ou a história verdadeira.
THE STRAYS (2023)
Excluídos
IMDb | Rotten Tomatoes | Letterboxd | Filmow
Direção Nathaniel Martello-White
Duração 100 min
Gênero(s) Terror, Drama
Elenco Ashley Madekwe, Justin Salinger, Jorden Myrie, Bukky Bakray, Samuel Paul Small, Maria Almeida +
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