Um sussurro na névoa, um desejo esquecido, um sonho do qual é impossível acordar.
Neste ano, quero fazer do meu espaço de escrita aqui no Horrorizadas, algo dedicado ao fascinante universo dos filmes de terror dos anos 70, um período crucial para o gênero e que muito me apraz. Uma década de ousadia, onde cineastas experimentaram novas formas de explorar o medo, seja de maneira profunda, gráfica, psicológica ou transgressora. O otimismo dos anos 60 deu lugar a um pessimismo palpável, impulsionado por eventos como a Guerra do Vietnã, o escândalo de Watergate e o colapso das utopias hippies. No horror, isso se traduziu em narrativas mais brutais, atmosféricas e perturbadoras.
O gênero floresceu em diversas frentes como o terror psicológico que atingiu novos patamares, ou o slasher que começou a tomar forma com sua violência gráfica e assassinos implacáveis, enquanto que o horror cósmico e a paranoia ganharam força. Além disso, o cinema europeu, especialmente o italiano e o francês, trouxe uma abordagem estilizada e sensorial, com nomes como Dario Argento, Mario Bava, Lucio Fulci e Jean Rollin.
É nesse contexto que surge Rollin, se distanciando da brutalidade dos exploitations para criar um horror marcado pelo lirismo e pelo surrealismo. Seu trabalho é frequentemente associado ao gótico clássico e ao onírico, misturando erotismo e melancolia. Lábios de Sangue (1975), minha porta de entrada para seu cinema, oferece um vislumbre desse universo ao abordar o mito vampírico de forma pouco convencional, investindo mais na atmosfera e na metáfora do que no terror tradicional.
Enquanto muitos filmes de vampiros se ancoram na figura do monstro como ameaça, pude perceber que Rollin adota um caminho diferente. Seu vampirismo não é o mesmo das encarnações imponentes de Drácula interpretadas por Bela Lugosi e Christopher Lee, nem a sensualidade gráfica das produções da Hammer. Em vez do terror explícito, o cineasta francês transforma o vampiro em uma presença quase espectral, ligada ao desejo e à memória.
O filme se desenrola como um sonho, ou talvez um pesadelo envolto em névoa. Nele, acompanhamos Frédéric (Jean-Loup Philippe), que ao ver a fotografia de uma antiga ruína à beira-mar, sente uma inquietação profunda, como se um segredo há muito enterrado estivesse prestes a emergir. Ele não entende o motivo, mas sabe que precisa encontrar aquele lugar. Sua busca o leva a descobrir que essa ruína está ligada a uma memória de infância perdida e, mais importante, a uma mulher misteriosa chamada Jennifer (Annie Belle), que parece estar esperando por ele.
Desde a cena inicial, Rollin já estabelece sua atmosfera original quando uma senhora, acompanhada por dois homens, chega de van a um cemitério. Em silêncio absoluto, eles descarregam o que parecem ser dois cadáveres envoltos em mortalhas e os colocam em caixões dentro de uma cripta. Mas, algo de errado não está certo ali. Não estamos lidando com corpos inertes, pelo menos um deles respira. Esse detalhe sutil, porém inquietante, define o tom do filme, um horror que não se apoia em sustos fáceis, mas sim em uma vibração persistente de estranheza.
A jornada de Frédéric se desenvolve como um labirinto onde realidade e fantasia se entrelaçam. Ele não busca apenas um lugar físico, mas tenta reconstruir uma lembrança que pode mudar tudo o que acredita sobre si mesmo. O que ele procura, afinal? Um amor perdido, um passado reprimido ou uma verdade impossível? Rollin conduz essa trama com sua assinatura inconfundível, onde a lógica dos sonhos domina a narrativa e a estética é tão importante quanto a história em si.
Se por um lado essa abordagem onírica torna Lábios de Sangue uma experiência sensorial única, por outro, sua estrutura narrativa pode ser um desafio. O ritmo é deliberadamente lento, quase hipnótico, mas há momentos em que a trama parece se arrastar, especialmente no segundo ato. A repetição de cenas contemplativas, somada à atuação por vezes rígida do protagonista, pode enfraquecer a imersão. Jean-Loup Philippe entrega uma performance que combina ingenuidade e obsessão, mas sua falta de expressividade em alguns momentos torna difícil estabelecer uma conexão emocional com Frédéric.

Além disso, o baixo orçamento do filme se reflete na produção. Rollin sabe usar locações desertas e composições visuais para criar uma atmosfera particular, mas algumas cenas são prejudicadas por uma iluminação irregular e diálogos mecânicos. O som direto, um problema comum em produções francesas da época, pode soar um pouco cru, intensificando a sensação de estranheza, mas nem sempre de maneira intencional.
Apesar dessas limitações, a obra de Rollin não busca o terror tradicional, e sim um estado de mistério e sedução. Os vampiros aqui não remetem ao cinema clássico de monstros, mas evocam um simbolismo mais profundo, explorando temas como desejo, memória e destino. O diretor constrói essa jornada com sua estética característica onde cenários desolados, longas cenas contemplativas e uma fotografia fria que reforça a sensação de isolamento do protagonista são destaques. As ruas desertas, os encontros enigmáticos e a presença fantasmagórica de Jennifer criam a impressão de que estamos presos em um sonho do qual não podemos acordar.
Se o vampiro de Rollin está distante da abordagem clássica, ele também se diferencia dos filmes de terror vampiresco que surgiram nos anos 70. Enquanto Ganja & Hess (1973) utiliza o vampirismo como metáfora existencial e social, e Os Vampiros Lesbos (1971), de Jesús Franco, explora o erotismo como ferramenta narrativa principal, Lábios de Sangue opta por um caminho ainda mais abstrato, onde o horror se dissolve em um fluxo de imagens e emoções.
Talvez a obra que mais dialogue com Rollin, ainda que por caminhos distintos, seja Nosferatu: O Vampiro da Noite (1979), de Werner Herzog. Ambos os filmes compartilham um ar melancólico e um senso de deslocamento temporal, onde o vampirismo é menos um elemento de terror e mais uma representação da solidão e do destino inescapável. Mas enquanto Herzog resgata a figura do Nosferatu como um ser condenado pela própria natureza, Rollin se entrega completamente à lógica dos sonhos, diluindo qualquer fronteira entre realidade e fantasia.
E aí voltando para a trama, enquanto Frédéric se aproxima da verdade, forças misteriosas tentam impedi-lo. Há figuras sombrias que o seguem, uma mãe dominadora que parece esconder segredos e o constante clima de que a própria realidade está se dissolvendo ao seu redor. O suspense cresce de forma sutil, sem recorrer a grandes reviravoltas ou choques narrativos, sustentando-se na incerteza e no desejo. Quem é Jennifer? O que realmente aconteceu naquela ruína? E, principalmente, o que Frédéric está destinado a encontrar?
O filme acaba e é inevitável a percepção de ter atravessado um sonho nebuloso, onde amor e morte se entrelaçam de maneira inseparável. Lábios de Sangue pede por um olhar mais atento e isso pode afastar quem busca um horror mais convencional. No entanto, para aqueles dispostos a embarcar em seu universo hipnótico, ele oferece uma experiência única, onde o medo se dissolve na névoa do desejo e da lembrança. Se essa foi minha primeira incursão no cinema de Jean Rollin, com certeza não será a última.
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