O livro Horror Noire: A Representação Negra no Cinema de Terror, escrito pela Dra. Robin R. Means Coleman, continua rendendo bons frutos por toda a discussão e debate sobre raça e representação nos filmes de terror. Já falamos aqui sobre o documentário de 2019 e agora vou escrever um pouquinho e levantar algumas reflexões sobre a antologia Horror Noire, que é um lançamento original da AMC junto com a Shudder para o Halloween de 2021. Apresenta seis curtas de terror negro, com diretores, roteiristas e protagonismo negros. A proposta aqui é ser uma continuação expandida do documentário com histórias novas ou adaptadas de nomes como Tananarive Due, Steven Barnes, Victor LaValle, Shernold Edwards, Al Letson e Ezra C. Daniels.
Na verdade, já era para ter saído um texto sobre esta produção, mas estava esperando um lançamento oficial até para que mais pessoas assistissem, porém nada de nadica de nada. Não tem como cair no clichê da reclamação da falta de interesse de distribuição e blá blá blá, haja visto que o próprio documentário Horror Noire só foi passar aqui dois anos depois de seu lançamento. Eu sempre fico me questionando e problematizando, mesmo que me torne a “chata do rolê”, e aí só lembro da fala do DJ KL Jay no documentário dos Racionais: “Eles têm medo. Medo do planeta preto. Medo”. Nos é dificultado conhecimento, oportunidades e cultura. Talvez tenha sido até bom esperar e fazer o fechamento do mês da Consciência Negra falando sobre um filme negro de horror com olhares bem particulares, originais, surpreendentes e bem distintos com cada seguimento focando numa faceta ou subgênero diferente do terror.
O primeiro é “The Lake”, escrito por Tananarive Due e seu marido Steven Barnes, é dirigido por Joe West e tem como mote a criatura mítica Sereia. É quando a professora Abbie (Lesley-Ann Brandt) se muda de Boston para uma casa remota à beira de um lago na Louisiana para tentar escapar de um trauma de seu passado, só que alguns moradores do local avisam para ela não ir nadar neste lago, pois coisas estranhas acontecem depois disso. Mas aí, como as coisas têm que acontecer, né, o que ela faz? Isso mesmo, vai nadar. Abbie contrata um de seus alunos para fazer pequenos reparos em sua casa, só que a relação entre os dois fica intima demais, o jogo de sedução, essa relação e os banhos no lago que exerce algum poder sobre as sombras de Abbie, vão transformando a professora psicológica e fisicamente. Um curta que aborda recomeços, com atmosfera sinistra de horror aquático que deixa a gente realmente instigado para continuar com as 5 histórias restantes.
“Brand of Evil” é o segundo curta e levanta ótimas questões sobre apropriação cultural, arte, talento e capitalismo, mas a meu ver, exagera no tom humorístico da abordagem. Nele, acompanhamos um artista grafiteiro que está pintando voluntariamente um centro comunitário e recebe uma proposta de trabalho de uma pessoa misteriosa que pagará 5 mil dólares por seu serviço. Tentado, pois só talento nunca pagará as contas, ele aceita sem fazer perguntas. O contratante volta a fazer mais propostas oferecendo cada vez mais dinheiro e o artista chega no impasse entre decidir terminar seu trabalho no centro comunitário ou seguir ganhando dinheiro realizando trabalhos que põem em risco sua própria comunidade. Como disse mais acima, a alegoria a que se propõe o curta é interessante, mas não se leva a sério. Não o tanto que o tema pede.
Já o terceiro segmento “Bride Before You”, retoma a seriedade numa história brilhante baseada no conto de Stephanie Malia e dirigido por Zandashé Brown. Aqui, viajamos de volta ao século 19 onde o foco é uma mulher (Lenora Crichlow) negra burguesa de pele clara que almeja uma certa posição na sociedade tendo um filho homem, ela encontra um marido que parece ser perfeito para seus desejos, mas não consegue engravidar. Isso vai se tornando uma aflição, até que toma a decisão de procurar ajuda “mágica”. Claro que, tudo tem seu preço, e o valor que ela paga, é caro demais. Uma alegoria monstruosa cheia de camadas sobre colorismo e trauma geracional das mulheres negras.
“Fugue State” é o quarto segmento e confesso que nem as presenças de Rachel True e Tony Todd, me empolgaram com essa história insossa e deveras esticada. Aqui, discussões sobre religião, cultos e fé são objetos de estudo de um escritor. Sua pesquisa atual gira em torno da investigação de uma misteriosa igreja local. À medida que passa a frequentar as reuniões, sua personalidade vai se modificando, obrigando sua esposa jornalista a investigar em segredo o que está acontecendo. Em paralelo a isso, a jornalista também investiga casos constantes de violência a grupos minoritários. Será que há alguma relação? Dirigido por Rob Greenlea a partir de um conto de Tananarive Due e Steven Barnes.
O penúltimo segmento desta antologia chama-se “Daddy” e é baseado no conto de mesmo nome de Victor LaValle com direção de Robin Givens. O curta explora a relação de um pai com seu filho, as mudanças, a superproteção e a insegurança que essa relação gera. Ao mesmo tempo que faz de tudo para ser um super pai, ele briga com seus demônios e traumas. Mas será mesmo que é um demônio? É uma história muito mais reflexiva do que impactante de fato, eu diria.
“Sundown” é meu segmento favorito e com uma história de fato potencialmente carismática e divertida. Dirigido por Kimani Ray Smith e escrito por Al Leston, acompanhamos um grupo de pessoas em campanha para um candidato negro ao senado, porém sem muito sucesso. Por algum motivo, a cidade é praticamente deserta. Alguns avisos ao longo do percurso como bandeiras confederadas e de que costumava ser uma cidade proibida para negros após o pôr do sol, o final do dia para eles chega com suspense com os pneus de seus carros todos furados, principalmente para o casal de negros Shanita (Erica Ash) e Marcus (Tone Bell). Bom, aprendemos em Lovecraft Country que uma cidade regida pelas leis de Jim Crow, era um verdadeiro pesadelo para pessoas negras. É nesta cidade que eles ficarão. De repente, tocando violino, aparece o prefeito da cidade, Constantine Erebus (Peter Stormare) que avisa ao grupo que esta é uma noite especial e os convidam para um jantar. Claro que Shanita e Marcus são os únicos a desconfiar, pois gato escaldado tem medo de água fria. Já no local do banquete, eles descobrem que todos ali são vampiros, tem inicio uma reviravolta interessante com ares de Buffy e Blade. Mesmo com o humor e o tom fantasioso, “Sundown” carrega mensagens sérias e um tom inteligente. Uma ótima maneira de terminar essa antologia de quase duas horas e meia. Isso desanima um pouco, mas encarei pela novidade e pelo teor social que carrega. Talvez se fosse uma série com os episódios durando o tempo que cada história pedisse, funcionasse melhor.
Gosto muito do tom que filmes de terror negro estão adotando nos últimos anos, saindo de velhos tropos e contando histórias de fato que nos envolve e representa, pois não somos feitos apenas de sofrimento e dor e isso tem muito a ver também com o que bell hooks fala quando questiona sobre a consciência e politização do olhar e das relações no desenvolvimento do cinema negro. É bem gratificante perceber essas mudanças de perspectivas que esse cinema alcançou ao longo das décadas.
Horror Noire (2021)
IMDb | Rotten Tomatoes | Letterboxd | Filmow
Direção Robin Givens, Kimani Ray Smith, Rob J. Greenlea, Director X. Zandashé Brown, Joe West
Duração 153 min
Gênero(s) Terror
Elenco Lesley-Ann Brandt, Nathaniel Logan McIntyre +
Tenho alguns sentimentos mistos em relação a essa antologia, e poderia explicar melhor dizendo que, com todos os meses que se passaram desde que assisti, apenas "The Lake", "Bride Before You" e "Sundow" são fáceis de lembrar para mim - até porque consigo fazer umas conexões (exageradas?) com Sweetheart, Um Lobisomem Entre Nós. Vampiros Vs o Bronx e tal... Na real, queria ter gostado mais da antologia, mas alguns conceitos me agradaram muito e penso demais em como certas criaturas e mitos ainda não têm, digamos assim, uma "abordagem neigra". Espero muito que mais ideias assim floresçam.