Swallow e as consequĂȘncias de um corpo anulado
- Tati Regis
- 19 de fev. de 2021
- 4 min de leitura
Zapeando pelo Mubi esses dias, na sessĂŁo horror, acabei esbarrando com Swallow, que aqui no Brasil ganhou o tĂtulo Devorar. Ă um filme extremamente perturbador e desconfortante, e mesmo tendo sido lançado em 2019, senti a necessidade de escrever sobre ele. A violĂȘncia e o horror contidos na obra tĂĄ longe daquela violĂȘncia grĂĄfica do body horror tĂŁo conhecido, muito pelo contrĂĄrio, ela praticamente inexiste. Aqui, a abordagem toma rumos nĂŁo convencionais e Ă© muito mais de um terror psicolĂłgico focado na decadĂȘncia de uma mente traumatizada. ImpossĂvel nĂŁo se abalar.
O filme Ă© sobre Hunter (Haley Bennett), uma mulher que apĂłs descobrir a gravidez, passa a engolir coisas e objetos nada nutritivos. Ela Ă© casada com o ricaço Richie (Austin Stowell), herdeiro e filho Ășnico mimado. Eles ganham uma super casa dos pais de Richie, e Hunter acaba virando dona de casa e completa submissa. Os dias passam e enquanto o marido sai para trabalhar, Hunter passa os dias sozinha em casa com joguinhos de celular ou fazendo de tudo para tentar agradar o marido que se encontra cada vez mais distante e indiferente. E Hunter cada vez mais isolada. Em Swallow, a fotografia, cores, ambientação, maquiagem e figurino que emula o dos anos 50, foram pensados propositalmente a nos levar a essa sensação de submissĂŁo da personagem.
Confira também nosso episódio sobre #002 Swallow (Devorar)
Em seu primeiro longa, Carlo Mirabella-Davis aborda de uma forma delicada, porĂ©m deveras perturbadora, um distĂșrbio psicolĂłgico chamado de "Pica". A sĂndrome consiste em impulsos de ingestĂŁo de coisas e objetos nĂŁo comestĂveis e que pode ser desencadeada tanto pela gravidez, quanto por estados de estresse e de traumas.

E Ă© daĂ que vem a parte extremamente desagradĂĄvel e aterrorizante da trama. Somos testemunhas e cĂșmplices de Hunter em suas comilanças estranhas que começam com uma bola de gude e passam a ficar cada vez mais perigosas como quando engole uma tachinha. Ă de se revirar no sofĂĄ de tĂŁo perturbadora que Ă© a cena. Mirabella-Davis faz uma construção de personagem muito interessante e complexa. Ela quer se mostrar o tempo todo perfeita e feliz e se tortura por isso cada vez que sente que falhou. "VocĂȘ Ă© feliz ou apenas tenta se convencer disso?" questiona sua sogra, outra mulher que mesmo tentando passar a ideia de que consegue ser dona da prĂłpria da vida, na verdade sĂł estĂĄ fingindo. Ela quer ajudar Hunter no casamento, mas acaba sendo sĂł mais uma peça de opressĂŁo de uma sociedade patriarcal.
Hunter estĂĄ prestes a uma ebulição e isso sĂł faz com que aumente cada vez mais os desafios de engolir. Eles se tornam perigosos e da tachinha a coisa evolui para objetos maiores e mais pontiagudos. "NĂŁo Ă© possĂvel!!" nos questionamos enquanto viramos o rosto. Mesmo anulada, Hunter Ă© envolta em uma atmosfera de proteção pela famĂlia do marido, e ao mesmo tempo por um isolamento. Numa Ăąnsia de cura, ela Ă© levada a fazer terapia e aĂ ficamos sabendo dos possĂveis motivos que a faz engolir. AlĂ©m de saber sobre seu passado e traumas.

A sensação de desmoronamento a invade cada vez que finge ser quem nĂŁo Ă©. A coisa se confunde entre cuidados com Hunter e cuidados com o bebĂȘ e a famĂlia contrata uma espĂ©cie de enfermeiro/segurança para cuidar da moça. Ele acaba exercendo um papel crucial na trama. A tomada de consciĂȘncia de Hunter Ă© muito interessante. Ă quando a gente a vĂȘ pela primeira vez enfrentando de forma corajosa o seu passado atĂ© a tomada de decisĂŁo que a torna realmente independente e dona de si. Dona de seu corpo. Dona de sua vida.
ImpossĂvel nĂŁo se lembrar de vĂĄrias outras obras em que mulheres se perdem numa expectativa de gĂȘnero criada em cima do que se espera de uma mulher seja na sociedade (esposa, mĂŁe e feliz) e acabam perdidas em casamentos infelizes onde tentam se convencer do contrĂĄrio. O prĂłprio Mirabella-Davis disse em entrevista que para escrever o roteiro, teve como inspiração a histĂłria de sua vĂł. Ela nĂŁo engolia objetos, mas acabou entrando numa compulsĂŁo por lavar as mĂŁos e num dia sĂł gastava 4 barras de sabonete e 12 frascos de ĂĄlcool isopropĂlico por semana atĂ© ser internada num hospital psiquiĂĄtrico e ser submetida a tratamentos medievais.
Pesquisando sobre o diretor, o prĂłprio jĂĄ se identificou como mulher durante seus 20 e poucos anos e se vestia como tal. Era com o nome de Emma que se apresentava. Anos depois voltou a se identificar e se vestir como o gĂȘnero masculino e hoje em dia aos 39 anos se identifica como homem cis. Para ele, ainda Ă© difĂcil se definir e durante a realização desse filme, Emma sempre o acompanhou.
Enfim, Swallow é filme que merece ser visto e discutido, principalmente após a cena final que pra mim acrescenta mais e mais camadas a uma obra que jå é extremamente profunda por abordar temas como problemas domésticos, conjugais e psicológicos ao mesmo tempo.

Devorar (2019)
Swallow
IMDb | Rotten Tomatoes | Letterboxd | Filmow
Direção Carlo Mirabella-Davis
Duração 1h34min
GĂȘneros Terror, Drama, Thriller
Elenco Haley Bennett, Austin Stowell, Elizabeth Marvel +